Strange infatuation seems to grace the evening tide
                                                              (I'll take it by your side)

  Dedos de pianista.
Leon tinha dedos compridos e magros, hábeis, perpetuamente empenhados em brincarem uns com os outros.
  Olhos de criança.
Os olhos de Leon tinham um quê de inocência que deveria ter sido perdido há vários anos. Tinham também a forma arredondada de quem sente curiosidade eterna.
  Sorriso de lobo.
Leon sorria com os dentes todos. Tinha um trejeito próprio de menino que fizera uma traquinice e faltava-lhe esconder as mãozinhas atrás das costas para ser a caricatura completa de um. O sorriso de Leon nunca tinha bons significados.

Kiara tinha mãos de guerreira, calejadas pelo manejar das armas. Olhos de serpente, semicerrados e perigosos. Sorriso raro. Mas nos seus modos cuidados e calculados, adivinhava-se a sombra de algo que só a prejudicaria: uma certa loucura, um desequilíbrio da personalidade que parecia tão madura.

E se Leon se interessava por tudo o que fosse susceptível à brevidade da vida humana, ela interessava-se por tudo o que escapasse à norma. Eram essas as bases da atracção.


              Instant correlation sucks and breeds a pack of lies
                                                              (I'll take it by your side)

- Não devia estar acordado.
Kiara soltou uma gargalhada crua. Mirou-o de alto abaixo com a sua provocação própria e deixou que o cabelo lhe tapasse o perfil como uma cortina. Não gostava que ele tentasse lê-la enquanto conversavam, mesmo que o soubesse incapaz de descodificá-la. Mesmo que o soubesse incapaz.
- Vá lá, Leon. Esperava um pouco mais de desobediência.
Leon não gostava do jeito com que ela se apossava de tudo. A mera presença da jovem já dava para preencher o quarto do chão até ao tecto, mas ela insistia em mover-se para cá e para lá, projectando sombras em todo o lado. Não gostava de vê-la tocar nos objectos que lhe pertenciam e intrometer-se daquela forma no seu espaço pessoal.
- O que queres?
- Companhia para passar a noite.
Ele inclinou ligeiramente o rosto, de olhos semicerrados.
- Mas tu tens companhia no teu quarto. Por que é que não acordaste uma delas?
A rapariga voltou a cabeça rapidamente, deixando a descoberto o semblante divertido. 
- É-te impossível pensar como nós.
Era uma conclusão e não uma pergunta, mas Leon teria gostado se ela o esclarecesse. O conceito de colectivo nunca estivera muito claro para si.
- E o que é que vamos fazer a noite toda?
- Aparentemente, nada. Não por falta de opções, mas porque tu pareces não conseguir entrar na mesma sintonia que eu.
- Estás a chatear-me com a tua conversa. É melhor voltares mesmo para o teu quarto.
- Senão?
- Senão, eu faço-te ires embora.
Kiara caminhou para junto da cama e sentou-se à borda, próxima o suficiente. 
- Consegues chamá-los? Aos teus fantasmas.
O moreno franziu o sobrolho, confuso e incomodado. Não era um assunto que as pessoas puxassem com tanta facilidade.
- Sim. De vez em quando - ainda a mirava com desconfiança. - Mas isso não quer dizer que os saiba controlar e nem que o vá fazer.
- Nem que eu peça?
- O que é que ganho com isso?
- O que eu te der. Se te comportares bem, dou-te ainda hoje.
Não era como se ele estivesse ansioso por chamá-los, mas era muito fácil incitar Leon a fazer fosse o que fosse. Bastava utilizar um determinado tom, fazer promessas pelo meio e dar-lhe a entender que era errado. A curiosidade vencia-o.


              Tick Tock

Ainda podia ouvir os gritos dele, ao fundo do corredor. 
Os alunos da Academia tinham saído das camas para descobrir a fonte da comoção e Kiara não se coibiu de mostrar tanta soberania como se desfilasse para eles - e não como se estivesse a caminho de um dos gabinetes, onde seria devidamente repreendida.
Repreensões não a assustavam verdadeiramente. Mas no fundo do seu âmago, um bicho feio - quase tanto quanto os fantasmas de Leon - começava a mostrar a cabeça negra. O bicho trepava-lhe pelo corpo e dava-lhe nós na garganta, deixando-a perfeitamente ciente de que a culpa fora sua. 

E embora os remorsos fossem o suficiente para deixá-la passar a noite em branco, não foram o suficiente para impedi-la de voltar ao quarto dele, assim que teve oportunidade.

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