Ai, desculpem, mas eu tinha mesmo de vir contar isto. Vai ficar um pouco confuso, mas não sou eu que tenho a culpa.
Então, estava a minha pessoa num banco de comboio, o lugar do lado vazio e os da frente ocupados por um loiro e junto dele uma morena de olhos verdes. A rapariga era extremamente bonita, mas não abriu o bico a viagem toda e pareceu-me tão alheia a tudo que cheguei a ponderar se não estaria medicada. O rapaz parecia um modelo, trajava todo de preto e tinha sorriso de malandro.
A certa altura, o loirinho lembrou-se de começar a falar comigo. Na verdade, já os conhecia de nome e de vista, mas nunca havíamos trocado uma palavra. Ele tinha uma lábia tremenda e era tão descarado que até me assustei.
Ao contrário do que eu pudesse pensar, eles não namoravam e o loiro nem parecia minimamente interessado nela, porque se separaram logo que terminou a viagem e ele não tirou os olhos de mim.
Se eu sabia que ia dar confusão? Claro que sabia! Se não soubesse, nem tinha reparado nele (ok, um bocadinho impossível, mas está bem)...
Não sei bem como, mas começámos a andar para cima e para baixo a todo o instante. Ele não correspondia realmente a nada do que eu esperava, porque não me encontrava simplesmente acostumada a pessoas como ele. Muito seguro de si, sim, e ciente do efeito que tinha nos outros, mas de repente não se quer mais nada, não se consegue desligar o interesse nele e sabe-se que não há mais volta a dar - eu soube, pelo menos.
O rapaz tinha aquele magnetismo todo, mas magnetismo a mais acaba sempre por ser perigoso, especialmente neste caso em que ele estava mais ligado a mim que aos próprios valores do ser humano. Acontecia uma série de tumultos por lá e, a meio, eu percebi que ele também fazia parte deles...fazia parte deles sem culpa, nem remorso e era implacavelmente eficaz em tudo o que provocava. Não o vi pestanejar sequer quando lançaram gritos atrás dele.
E eu lá queria saber? Eu pensava nisso...vinham-me à cabeça lembranças das coisas que ele fazia sem se arrepender, mas eu estava do lado dele. O lado dele é que era o correcto, de qualquer das formas...mas essa coisa do "lado certo" depende muito da frente que estamos a defender. Se eu estivesse do outro lado, era ele o errado.
Mesmo assim, segui. Já não via mais nada, nem estava com mais ninguém. Fomos mandados para outro lado, mas continuávamos juntos e eu só o queria a ele.
Isto foi uma obsessão de todo o tamanho! Não havia hora, de noite ou de dia, que não fosse ocupada por ele. Tínhamos as conversas mais estranhas de sempre e não existia algo que o coibisse de fazer o que quer que lhe apetecesse.
Mas nenhum dos seus actos me afastava. Surpreendia-me ainda muito, mas era tudo tão...não sei, não posso utilizar o conceito de normalidade aqui, mas era como se tudo "encaixasse", como se não houvesse limite.
O certo é que ninguém nos punha os olhos em cima, enquanto estávamos na companhia um do outro e só ouviam dele pela minha boca. Eu andava nas nuvens, lá queria saber do resto.
Depois começaram a questionar-me, a chamar-me mentirosa e a mim pareceu-me tudo super absurdo, mas tinha perdido a credibilidade de uma hora para a outra. Começaram com invenções, só porque nunca ninguém o via...e eu lá tinha culpa disso? Nós queríamos estar um com o outro, queríamos envolver-nos até ao ponto em que não se sabia onde terminava ele e começava eu. Não tínhamos nada que perder a privacidade.
O que eu levei como descrição, eles levaram como mentira. E assim me acusaram um dia directamente, me pediram por uma prova concreta de que nós estávamos juntos, de que ele existia - vejam a estupidez da questão! Não sei, se calhar tenho ar de louca.
E onde estavam as provas físicas? Eu tentei chamá-lo, tentei encontrá-lo, falar com ele, mas não sabia onde estava o meu loiro...Não tinha provas físicas de que ele existisse. Lembrei-me de uma coisa, uma coisa que era indiscutivelmente uma prova. Subi as escadas, fui à porcaria do meu quarto, revirei tudo e não estava lá.
Porra, estivera nos braços dele na noite anterior, a certificar-me, e ele a dizer que não queria nem precisava de mais ninguém. Agora não sabia dele e não encontrava a prova.
Nunca me passou pela cabeça que estivesse mentalmente abalada e tivesse realmente imaginado tudo. Ele era diferente, lá isso era, nós saímos lá de onde eu o conheci em condições pouco comuns, mas tinha realmente certeza do que vivemos.
Fiquei tão desesperada que cheguei ao ponto de fugir dos outros e gritar o nome dele a plenos pulmões, na esperança de que ele aparecesse por artes mágicas. Mas ele não veio.
Na verdade, cheguei a ter a tal prova na mão. Atirei com as coisas aflitivamente para cima de uma mesa, para lhes mostrar, arremessei com tudo para muitos cantos e a dita cuja já não estava lá...estavam a conspirar contra nós. Tinha agora a certeza de que o tinham afastado de mim, de que me tinham roubado para que ninguém acreditasse em mim, para que ninguém descobrisse a verdade. E continuei a atirar com tudo desenfreadamente, a chorar lágrimas gordas que saíam aos pares, completamente perdida e angustiada.
Sem ele, nada faria sentido. Para onde iria? Pensei então em empenhar-me mais...eu ia encontrar alguma coisa que nos ligasse, eu ia encontrá-lo a ele!...
E depois acordei.
Etiquetas: ashtray heart, crenças
Comentários:
Enviar um comentário