As linhas do teu rosto às vezes chegam cansadas à minha almofada e o teu corpo chega pesado à minha cama, preguiçoso, enfarruscado...e mesmo assim, encolho-me contra ti, contra o cheiro a lume, contra o calor que parece sair das labaredas e colar-se directamente à tua pele. Nunca tive medo que me sujasses os lençóis e, quando sujaste, fui também eu preguiçosa para trocá-los. Preguiçosa, previsível e necessitada.
E os teus cabelos, sempre demasiado densos e compridos, a tapar-te os olhos para meu bem ou para meu mal. São espessos, mas não tão áspero como a barba por fazer há uns dias. Podia dizer que gosto mais de ti com a camisola branca, limpo e de barba feita, mas na verdade eu gosto de ti de todas as maneiras, tão perigoso e infalível.
Também gosto do teu nariz, principalmente por não ser convencionalmente bonito, mas tão engraçado quando encostado à minha bochecha. Só que às vezes, encontro-te com os dentes demasiado cerrados e apesar da tua boca nunca chegar a ser cruel, nem o nariz deixar de ser distinguível, está nos teus olhos a resposta para os dentes cerrados. Dentes cerrados por detrás de lábios de gato, curvados e tão belos, definitivamente a parte mais bela do teu rosto.
Queria falar do quão comum és, mas acabei por fazer uma ode a ti. Nada está perdido, afinal de contas, a minha intenção não deixava de ser fazer uma ode à rotina e, bem, tu és rotina para mim...quando não desapareces por dias que levam semanas e semanas que levam anos. Mas mesmo quando voltas, o teu corpo é o mesmo, grande e esmagador, apetecível no seu todo.
E de repente, o habitual torna-se fantástico! A maneira como me gozas com o olhar, o sorriso imperceptível, a gargalhada má. Tu, o teu cheiro a brasas e as mãos frenéticas. Mas também a preguiça, a conversa fácil ou a mudez quando simplesmente preferes ser bruto e não dizer uma palavra. A respiração pesada ao meu lado, os braços a magoarem-me a pele enquanto dormes, as olheiras cansadas, o suor, a carne mole, os vícios pequenos e os grandes. Sempre o mesmo como se te conhecesse há anos, mas subitamente "o mesmo" ultrapassa "a novidade" e o que é velho é de fácil encaixe, dispensam-se perguntas, não é preciso ir pela experimentação porque sabemos o que fazer. Acho que contigo é assim, ainda que não te tenha há tanto tempo quanto isso...ou então tenho-te desde que nasci, dentro do armário, debaixo da cama, atrás das cortinas, na sombra da minha própria sombra, entranhado no meu sangue.
Falar com os mortos não é produtivo, mas os vivos não me ouvem, então converso contigo. Nem morto, nem vivo, algures no meio.
Etiquetas: ashtray heart, ken, passado
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