- Quando as pessoas ardem, elas vão para o céu. Devias pedir para ser cremada.
O som súbito da sua voz cortou o silêncio que se instalara no quarto e, por momentos, senti-me assustada com o seu timbre. Procurei ver-lhe o rosto ou, pelo menos, os olhos, mas a escuridão não permitia.
- Viraste-te para a religião? - perguntei.
- Não é religião. Nunca estiveste ao pé de uma morgue?
- Não.
- As pessoas são fumo branco, do mais branco que há, e sobem da chaminé até ao céu. Não queres ir para o céu?
A cada pergunta, sobressaltava-me mais. Ele não é muito de falar, mas quando o faz é sempre assim - para inquietar os outros; se calhar, não consegue dizer palavras normais ou ter conversas de ocasião. Mas, na verdade, talvez seja exactamente isso que me fez gostar de estar ali, a fitar o tecto ao lado dele.
- Não me respondeste. - tornou.
- Não sei o que quero.
- Não sabes se queres ir para o céu? - sentiu-o voltar a cabeça para mim. - Pensando bem, talvez já vás tarde. Estás aqui deitada comigo.
- Pronto, assim resolve-se o problema. Não importa o que quero porque estou aqui deitada contigo e, por isso, já não devo poder ir para o céu.
- Podes escolher levantar-te. Ou preferes-me a mim em vez de uma eternidade no paraíso?
Virei-me para o lado e cheguei-me mais a ele. Esperava que se distraísse com a proximidade e se esquecesse da conversa.
- Estás pouco faladora.
- E tu estás uma gralha, é assustador.
- Agora tens medo de mim?
- Sempre tive.
Finalmente, a sua atenção dispersou-se. Puxou-me para si e não precisou de verbalizar, pois eu já sabia o que ele queria.
Quando acabámos, separou-se de mim e deu-me a mão. Suspirou. A luz da manhã começava a surgir pela janela e eu já lhe conseguia ver os olhos.
- Isto entre nós é definitivo. - informou.
- Definitivo?
- É para a eternidade. Não há cancelamento, nem livro de reclamações; é como é e não tem fim.
- Está bem.
Repousei a cabeça no seu ombro e fechei as pálpebras. A minha mente era preenchida por nuvens cor de neve, no entanto, não subiam para o céu...no lugar do céu só existia um vazio tão negro quanto a cor das íris do homem com quem partilhava o colchão e, assim que o alcançavam, as nuvens dissolviam-se.
Etiquetas: ashtray heart, crenças, desordem da personalidade, ken
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