O bilhete de Dolan era conciso e objectivo; todos deveriam comparecer na sala de visitas, por volta das dez da noite.
Scott considerara não dar ares de sua graça, enquanto o colega de quarto saíra disparado do quarto quando bateram as nove e cinquenta. Damon e Kiara foram pontuais, atravessando a ombreira da porta juntos, precisamente às 22:00h. Coleen bateu à porta de Scott às dez e cinquenta e cinco e levou exactos sete minutos para convencê-lo a acompanhá-la.
Bem ou mal, todos chegaram à reunião - convocada, mas não atendida pelo mentor de alguns deles.
Na mesa de centro repousava um cartão.
- Posso abrir eu? - retorquiu Coleen, dando pequeninos saltos de entusiasmo sem sair do lugar.
- Ah, a líder. Tem de ser a líder a abrir o recado, obviamente - troçou Scott que se atirara para o sofá à primeira oportunidade.
Coleen revirou os olhos, antes de avançar de forma confiante para a mesa. Desdobrou a folha, leu-a primeiro em silêncio e, quando Scott reclamou pelo egoísmo, decidiu-se a lê-la em voz alta:
- Caros alunos, a Academia tem o prazer de desejar-vos um Bom Natal e Próspero Ano Novo. Para aqueles que celebram as festividades na Academia pela primeira vez, bem-vindos e espero que tenham apreciado a ceia natalícia.
Fez uma pausa para soltar um pequeno suspiro e sentar-se numa das cadeiras.
- Para os restantes, tenho o prazer de anunciar que este ano os eventos serão realizados de maneira um pouco diferente, de forma a permitir-vos um tempo a sós com os vossos amigos mais próximos.
Scott fez um estardalhaço, ao bater palmas e rir muito alto. Lagarto deu-lhe uma cotovelada enfadada.
- Muito engraçado que tenhamos acabado juntos - comentou.
- O que queres dizer? - interrogou Kiara, soberanamente banhada pela luz da lareira. Estava de braços cruzados ao peito e envergava uma túnica branca que a fazia assemelhar-se a um anjo mortífero.
- Nadinha. Mas acho inteligente terem separado as ovelhas negras dos outros, neste natal - sorriu largamente. - Vocês sabem, retirar a mação podre do cesto, antes que as outras se estraguem.
- Continuando - Coleen elevou a voz, de forma a roubar novamente as atenções -, diz aqui que cada um de nós vai ter direito a um presente e que tudo o que temos de fazer é ir buscá-lo à árvore - apontou para a árvore natalícia que se empunha ao fundo da divisão.
- Presentes! - cantarolou Lagarto como uma pequena criança. Foi o primeiro a voar até ao seu, chocalhando-o de imediato entre os dedos para tentar adivinhar o que seria. Um CD da sua banda favorita, quando ainda morava na Terra.
Scott, por seu turno, desembrulhou a prenda com pressa para descobrir um baralho de cartas novinho em folha. Esboçou um pequeno sorriso na lateral e proclamou um "Nada mau..." como único comentário.
Coleen e Kiara tiveram o cuidado de não rasgar o papel de embrulho. A oferenda da primeira era uma camisola alusiva a um dos seus desportos favoritos e a da outra era um livro grosso sobre budismo.
Durante todo o tempo, Damon mantivera-se voltado para o fogo, como se fosse um mero intruso na reunião familiar. A certa altura, Coleen chegou-se a ele em passos de lã e deixou escorregar os dedos por entre os dele.
- Não abres o teu presente?
Damon sorriu ligeiramente, as labaredas a espelharem-se alegremente nos seus olhos cor de carvão.
- Não preciso. Estou contente com o que recebi - garantiu, encolhendo os ombros no processo.
Coleen, segura de que compreendera a mensagem, encostou a cabeça ao ombro dele e deixou-se ficar a observar as chamas.


- Lagarto?
- Hm...
- Estás acordado?
- Não.
- Então acorda.
Lagarto suspirou audivelmente e esfregou os dedos nas pálpebras.
- O que queres, Scott?
- Não consigo dormir.
- E o que é que eu tenho a ver com isso?
Scott saltou da própria cama e foi sentar-se descontraidamente na ponta da cama do companheiro.
- Relembra-me o porquê de eu ter concordado ficar no mesmo quarto que tu.
- Foi para me veres a sair do banho.
Lagarto deu-lhe um murro no braço, fazendo-o desequilibrar-se e quase cair da cama.
Quando parou de rir, Scott soltou um suspiro e fitou a porta sem grande interesse.
- Deve ser triste lá em baixo.
- Está toda a gente a dormir...E tu também devias estar, Scott.
- Não, lá em baixo.
- Hm.
- Enfim, deve ser triste.
- Deve.
O loiro remexeu-se desconfortavelmente nos lençóis, voltando as costas ao colega.
- Sabes, eu não estou louco.
- Não, claro que não...ah, Scott, a sério que me acordaste para isto?
- É que de vez em quando eu vejo-a - disse. - Vejo-a na cara dos mentores, na cara dos professores e na cara das pessoas que passam por mim na rua. Vejo a minha irmã.
- Scott, a tua irmã está...
- ...Morta, eu sei. Mas juro-te que às vezes a vejo.
Sem saber bem o que fazer, Lagarto limitou-se a saltar do colchão e a seguir até à cómoda de Scott. Regressou com o baralho novo entre as mãos.
- Vai uma partida? Quem perder dorme no chão.
- Espero que gostes do tapete - riu e apressou-se a cortar as cartas. - Ouvi dizer que os lagartos gostam de dormir em cima de pedras e tal - ironizou, antes de ser acertado por uma das almofadas.


Kiara estacou sobre a soleira da porta e divertiu-se a observar o rapaz por alguns segundos, até este dar pela sua presença.
Leon estava sentado sobre o tapete, enrolado numa manta, e podia antever-se metade da sua camisola com motivos natalícios. Uma imagem algo irónica, na opinião da rapariga que avançava para ele em passos precisos.
A morena ocupou um lugar em frente a ele, dando-lhe o privilégio da sua imagem frontal, iluminada pelo luar que escorria da janela.
- Bom Natal - desejou Leon, embora não compreendesse na totalidade o significado das palavras.
Kiara não respondeu. Ao invés, roubou o caderno que repousava sobre um dos joelhos do jovem e repassou as páginas preguiçosamente.
- Dá-mo.
Como ela não obedeceu, Leon viu-se obrigado a oferecer um pequeno arranhão a uma das suas mãos. Aprendera que cortes muito fundos o metiam sempre em alhadas.
Porém, a rapariga não viu aquilo como um progresso e acertou-lhe uma estalada na bochecha. O som seco ecoou pelo espaço quase vazio.
O moreno levou os dedos à face ardente e fitou-a friamente. Kiara provocava-o silenciosamente.
- O que é que vieste buscar?
- Nada.
A voz dela continuava a soar-lhe demasiadamente calma. Ele nunca escutava calma na voz dos outros, a menos quando se tratava do pessoal médico - e a calma desses era forjada pelo tom clínico e profissional; A de Kiara era natural e ele sentia-se confuso pelo porquê de ela quebrar a norma padrão.
- Hoje é Natal.
- Sim, Leon. Hoje é Natal.
- E as pessoas costumam passá-lo com outras pessoas.
Um sorriso divertido bailou brevemente nos lábios da moça.
- E aqui estamos nós, duas pessoas.
- Com pessoas de quem gostam - corrigiu. - Tu não gostas de mim.
- Quem gosta?
Leon não compreendeu que a pergunta era retórica e respondeu prontamente com um "Ninguém".
Mantiveram-se em silêncio por alguns minutos.
- Também consegues desenhar?
- Não, só escrever.
- Já tentaste?
Ele readquiriu o seu bloco e focou a mente no papel, tentando que surgissem formas novas. Teve uma ideia e os olhos de um azul gélido dirigiram-se a Kiara com a impessoalidade que costumava assustar os objectos da sua observação - mas que não a assustavam a ela, claro.
Devagar, estendeu o retrato para a colega que o examinou minuciosamente.
- Muito bom.
- Perfeito, na verdade. Só tive que gravar o teu rosto e passá-lo para o papel.
- Não. Já me fizeram retratos melhores.
Leon franziu o sobrolho, desgostando da crítica. Como uma criança zangada, atirou o caderno para longe de si, fazendo com que Kiara soltasse uma gargalhada. Cortou-lha, ao mesmo tempo que lhe cortava uma das bochechas. A linha de sangue na pele de porcelana tentava-o a tocar-lhe, mas ele não cedeu.
- Agora, perfeito - afirmou, sorrindo satisfeito.
Kiara limpou o rosto à manga da túnica, manchando o branco com vermelho e formando um contraste agradável aos olhos de Leon.
- Tens razão. As pessoas passam o Natal com quem gostam - levantou-se graciosamente - e tu estás aqui sozinho por um motivo. Bom Natal - desejou, antes de deixá-lo novamente entregue ao silêncio.
Leon arrastou-se para trás, até as suas costas repousarem contra a parede fria. Dentro de si, criara-se uma inquietude estranha que ele não podia compreender. Se fosse normal, saberia atribuir um nome a cada um dos poucos sentimentos que nutria - porém, normalidade não era um conceito aplicável ao rapaz.




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