Não sei exactamente se a carta chegará a ti, mas se chegar quero que saibas que compreendo a tua falta de liberdade. Há, no entanto, uma grande chance dela não chegar sequer a sair da vila poeirenta onde me encontro. Pedi ao meu pai que a levasse até ao posto de correios, porque quem melhor para confiar algo assim do que ele? É mais confiável do que eu mesmo tentar entregá-la, especialmente quando nem tenho a certeza se conseguirei escrevê-la até ao fim. A minha memória tem cada vez mais lapsos e sinto que estou tão fora do controlo como aqui há uns anos, embora fosse suposto melhorar e não regredir...mas acho que desta vez se pode dizer que a culpa é
dela.
Não consigo dizer exactamente quanto tempo passou desde que as portas se fecharam, por isso, é estranho que as tuas peripécias no telhado me venham recordar, ao fim de tantas coisas, o telhado onde a encontrei. Na verdade, toda a tua carta me recorda o que aconteceu com tamanha intensidade que começo a imaginar se não serás produto da minha imaginação ou se não serás produto de outro alguém...não seria a primeira vez que me tentavam apanhar com artimanhas. Não sei para quê, nunca tive posse de mim mesmo. Mas tens razão, talvez estivesse no telhado como tu, se passasse aí as noites; agora que penso, não seria assim tão difícil chegar até ti.
Às vezes chegam-me ruídos do outro lado, imagens desfocadas ou simples escuridão. Fiquei preso, submerso, durante demasiado tempo e, por mais que ela se esforce, não vou conseguir tornar a entrar na vida dela como antes. Acho que morri.
Estar morto explicaria tudo, afinal de contas, eu vivi enquanto ela quis e para o que ela quis. Depois dela partir, até o sítio onde moro mudou, e as pessoas desapareceram como meros figurantes que eram, personagens modelo que não evoluem.
Compreendo a tua falta de liberdade, pois eu mesmo não a tenho. É engraçado, quase irónico que me peças para te salvar. Falhei redondamente na tentativa de salvar alguém e fui remetido para o esquecimento, porque estava a consumir as forças e a arrastar esse alguém comigo. Por isso, talvez pertença eu ao asilo...sugeria-te uma troca, mas duvido que te desses bem no local onde estou.
Um dia destes podemos encontrar-nos; uma volta pela vila da melancolia ou uma visita guiada ao encarceramento dos loucos, o que te parece melhor?
Boa sorte para o teu futuro,
Rui G.
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