Era tremendamente estúpida a possível tendência quase suicida, mas as cogitações sobre como seria o seu funeral, de quem compareceria e das reacções de cada um eram-lhe quase naturais. Isso e o devaneio de como seria morrer, as perguntas retóricas sobre o fim/começo, o enumerar das possíveis maneiras para se fugir à vida e a selecção das que se afiguravam mais "atraentes".
Rasgava o pescoço numa linha recta e ficava deitado sobre uma poça de sangue vermelho-vivo, que se alastrava lentamente em partículas rubra a unirem-se como pixeis, e a colorir os lençóis por baixo de J que permanecia deitado de barriga para baixo. Ou então cortava os pulsos - numa linha vertical para o conduzir à morgue e não ao hospital - e mantinha-se desconfortavelmente encostado à parede de tons branco sujos, a vida a esvair-se à medida que o líquido púrpura o fazia igualmente...Um tiro na base do queixo, algo muito rápido. Uma corda mal amarrada no pescoço para o corpo se precipitar em direcção à derradeira suspensão. Um frasco de cristal a caber na palma da mão com um líquido negro que escorregava divertido pela goela abaixo.
J não recordava com nitidez uma ocasião em que tivesse realmente querido morrer, em toda a acessão da palavra, nada de frases ditas da boca para fora. Ele queria a vida, a agitação, a revolta e até a agonia da sua cabeça. Sentia, na maioria do tempo, acessos de fúria e não anseios de uma noite eterna. Tinha tendência a tornar-se sombrio, mas nada demais - pelo menos, eram estas as suas convicções acerca do assunto.
Possuía, porém, a consciência de que as coisas que compunham o seu mundo, as coisas das quais ele gostava, carregavam a amarga e infeliz cruz da mortalidade. Uma noção gritante de que iria morrer e ver outros a fazê-lo compelia-o a ponderar se não seria preferível morrer mais cedo, de uma forma que ele mesmo escolheria, deixando menos para trás, criando menos impacto nas pessoas que o conheciam, acelerando um processo que era inevitável e saltando partes de um futuro incerto que não revelava o que tinha reservado, tendo assim o privilégio de poder partir de maneira digna, indolor e planeada, se o quisesse. Parecia mais...fácil se fosse repentino. Ia acontecer de qualquer jeito, para quê esperar?

Etiquetas: desordem da personalidade, personagens
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